O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Ministério da Saúde trabalham em parceria para implementar o fechamento gradual de Hospitais de Custódia, voltados para tratamentos psiquiátricos, em todo o Brasil.
A meta cumprirá a Lei Antimanicomial de 2001 (Lei nº 10.216/2001), regulamentada por medida do Poder Judiciário (Resolução CNJ nº 487/2023).
O projeto é alvo de discussões – e divergência – entre a comunidade médica, gestores da área da saúde mental e formuladores de políticas públicas.
O que diz o Ministério da Saúde
Segundo Helvécio Magalhães, secretário de Atenção Especializada à Saúde, o ministério quer realizar ações com foco na defesa dos direitos humanos de populações vulneráveis. O trabalho prevê a assinatura de um Plano Nacional de Desinstitucionalização de pacientes.
“Será pactuado com Estados e municípios o financiamento federal para equipes multidisciplinares para este trabalho, para avaliar cada usuário e o integrar de forma responsável em um ponto da rede de atenção. Além disto, vamos induzir o crescimento desta rede onde for necessário. E este trabalho só será efetivo na parceria com o CNJ, dialogando com os juízes e avaliando conjuntamente com o SUS todo o plano de trabalho a ser elaborado de modo compartilhado”, explicou Helvécio.
O assunto foi discutido em reunião com representantes da Saúde e do CNJ na semana passada.
Sônia Barros, diretora do Departamento de Saúde Mental, afirma que a política antimanicomial do CNJ está de acordo com o modelo de atenção psicossocial que o ministério vem realizando há mais de duas décadas:
“O Brasil se tornou referência mundial em políticas de desinstitucionalização na saúde mental. O nosso departamento está investindo na expansão e na qualificação dos serviços de saúde mental que também irão atender as singularidades da desinstitucionalização dos Hospitais de Custódia. É compromisso do Ministério da Saúde garantir o cuidado de qualidade para todas essas pessoas.”
Posicionamento do Conselho Federal de Medicina e de associações
O Conselho Federal de Medicina (CFM) se posicionou, em nota divulgada na segunda-feira (8), em que apoia manifestação contra fechamento de Hospitais de Custódia e Tratamentos Psiquiátricos.
A posição, contrária à resolução do CNJ, é reiterada pela Associação Brasileira de Psiquiatra (ABP), Associação Médica Brasileira (AMB), Federação Nacional dos Médicos (Fenam) e Federação Médica Brasileira (FMB) – veja a íntegra abaixo.
Na avaliação das entidades, o fechamento das instituições por conta da determinação do CNJ pode trazer riscos com impactos sociais e para a segurança pública. De acordo com a nota, a medida, que entrará em vigor no próximo dia 15, foi formulada sem o debate necessário com o segmento médico.
“Esse documento [a Resolução do CNJ] é um perigo para a população brasileira, pois determina o fechamento desses Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico e diz que todas essas pessoas (criminosos) voltariam para a sociedade e fariam tratamento junto com a comunidade, se assim, essas pessoas quiserem”, alertam as entidades.
O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) também se manifestou por meio de nota contra a resolução do CNJ. O documento pede a revogação da Resolução do CNJ “até que estudos qualificados sejam elaborados, debates plurais, técnicos e democráticos sejam empreendidos sobre o assunto.”
“O Conselho entende que não é fechando locais especializados que recebem pacientes com transtornos mentais e os colocando em outros estabelecimentos com enfermos das mais diversas características seja uma atitude salutar. Além de colocar em risco a saúde e a segurança dos pacientes, esse modelo estende o prejuízo aos familiares e à população em geral, que fica à deriva em busca de assistência e tratamento de transtornos mentais adequados para quem precisa. A medida vai contra os interesses do próprio paciente que está nesse tipo de instituição”, diz trecho da nota do Cremesp (leia a íntegra abaixo).
Tema é alvo de debate na Câmara dos Deputados
A resolução também foi alvo de debate na Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados, no dia 3 de maio. O pedido para realização do debate é do deputado Alberto Fraga (PL-DF), que manifestou preocupação em relação à solução apresentada para casos graves.
“A norma determina que autores de crimes graves sob transtorno mental, em especial aqueles com personalidade antissocial (comumente chamada sociopatia) como o são, por exemplo, os assassinos em série, deverão ser internados em estabelecimentos comuns”, disse.
Entre os convidados, estiveram o procurador de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) Antônio Henrique Graciano Suxberger, representando a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público; a presidente da Comissão Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Conselho Federal da Organização dos Advogados do Brasil (OAB), Maria Eugenia de Oliveira, e a desembargadora do Tribunal de Justiça do Paraná Priscilla Placha Sá.
Suxberger afirmou que, no ato de aprovação da medida, não constam bases e dados atuais do sistema no país.
“Não há uma indicação, sequer de bases e dados empíricos do sistema hoje presente no Brasil. Ainda que falho, quanto às suas estruturas, de leitos, vagas, como eles se encontram. Ou seja, não há diagnóstico sobre o que sejam os destinatários das disposições dessa resolução. Esse me parece ser o maior objeto de preocupação”, disse o procurador na sessão da Câmara.
O procurador prossegue afirmando que vê com preocupação sobre o fechamento de unidades a partir da aplicação da resolução.
“E me parece faltar nesse ato, uma construção empiricamente lastreada sobre o que seriam minimamente os impactos dessa resolução, e aqui faço coro à preocupação em relação a esse escalonamento: num primeiro momento, de seis meses e, depois, de doze meses, nas determinações de fechamento e esgotamento das unidades hoje presentes para o que se faz como serviço, reconheça-se falho, mas como solução de força não será objeto de aprimoramento ou melhora unicamente com uma determinação de fechamento de suas portas”, avalia.
A desembargadora Priscilla Placha Sá, do Tribunal de Justiça do Paraná, afirmou que a preocupação com a resolução, evidenciada pela realização da sessão, vai além do contexto da Câmara dos Deputados. “São os dispositivos descritos nos artigos 13 e 14 da resolução já referidos, como a questão da interdição parcial e total, e o que esse fechamento paulatino poderia gerar”, disse.
“Hoje nós temos, segundo essa informação do Infopen [Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias], 2.007 pessoas internadas em medida de segurança, sendo 118 mulheres e 1.889 homens. E em tratamento ambulatorial, 422 pessoas, sendo 17 mulheres e 405 homens”, pontuou Priscilla.
A desembargadora afirma que, no sistema, não consta informações sobre em quais serviços o tratamento ambulatorial é realizado. “As medidas de integração nessa atualização, hoje estão compondo 27 unidades, sendo 12 destinadas somente à homens. Uma somente a mulheres e 14 são mistas. E ali, uma informação que nos leva a essa preocupação trazida pelos palestrantes, sobre a compreensão do grupo multiprofissional que atende a população em privação de liberdade.”
Priscilla afirma que não há destaque na composição dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPS). “Os dados são gerais”, avalia. “Nós temos profissionais da psicologia, aproximadamente 1.400; de enfermagem, aproximadamente 1.700; de psiquiatria, 314; serviço social, 1.534. Há um total de 1.458 estabelecimentos e, parece bastante provável, que essa equipe multiprofissional não esteja como é da lida forense, alocada unicamente nos HCPTS”, afirmou.
Diretrizes
A Resolução CNJ n. 487/2023 aponta diretrizes para a atuação da magistratura ainda durante as audiências de custódia, ou seja, ao identificar pessoas com indício de transtorno mental em caráter preventivo e não só a partir da desinstitucionalização de quem já está em Hospital de Custódia.
Essas pessoas continuarão sob os cuidados de um médico, mas também devem ser acompanhadas por uma equipe multidisciplinar qualificada e, desde então, receber atendimento de saúde apropriado e conforme as respectivas necessidades, sem prejuízos do acompanhamento da medida judicial eventualmente imposta.
Ouvidos Ministério Público e defesa, caberá à autoridade judicial o encaminhamento da pessoa ao atendimento na Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que para além do atendimento saúde adequado tratará de endereçar encaminhamentos voltados à proteção social e políticas e programas adequados, a partir de fluxos já estabelecidos com a rede e o modelo orientado pelo CNJ.
O artigo 13 da Resolução determina que a medida de internação só deverá ser implementada se ocorrerem hipóteses excepcionais, quando não suficientes outras medidas ou quando compreendida como recurso terapêutico momentaneamente adequado no âmbito dos Projetos Terapêuticos Singulares (PTS).
A internação pode ser aplicada, ainda, quando necessária para o restabelecimento da saúde da pessoa, desde que prescrita pela equipe de saúde, em alinhamento com a Lei 10.2016/2001, que estabelece, em seu Art. 4º, que a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.
A internação será cumprida em leito de saúde em Hospital Geral ou outro equipamento de saúde referenciado pelos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), cabendo ao Poder Judiciário atuar para que nenhuma pessoa com transtorno mental seja colocada ou mantida em unidade prisional, ainda que em enfermaria, ou seja submetida à internação em instituições com características asilares.